- Por que será que
para mim sempre sobra mês?
- Seria tão bom se de vez em quando sobrasse dinheiro.
- Que sonho!
Meu pai me disse certa vez: Um
homem tem deveres. O dever está sempre em primeiro lugar. Parece que
levei isso à risca, devo para meio mundo. Mas a vida é assim e
nos dias de hoje estar empregado é ter sorte. Feliz daquele que possui
um bom emprego!
Eu e minha família
morávamos numa pequena cidade litorânea, cidade onde nasci e onde fiquei
até minha adolescência. Meus pais eram muito pobres e viviam com
bastante dificuldade. Hoje tenho saudades daquela época, pois apesar de
ter uma vida regrada, eu era muito feliz. Não tinha dinheiro, mas por
outro lado vivia em contato com a natureza e a curtia muito. Gostava de
caminhar pelas areias da praia. Fazia o percurso mais longo de casa ao trabalho
só pelo prazer de sentir a brisa do mar e o cheiro da praia.
Certa tarde após sair do
trabalho, como tinha recebido meu pagamento, eu decidi passar numa
lotérica e fazer um jogo na loteria de números. Ao caminhar rumo
à minha casa sonhava com uma casa grande e bonita e também com um
automóvel para passear com as meninas. Passando por um daqueles
chalés da beira da praia pensei em tomar uma bebida quente para aquecer
meu corpo. Mas não seria ali, pois nos chalés as bebidas
são mais caras. Continuei caminhando e mais adiante entrei num boteco,
que até então eu não conhecia. Estava muito frio e apenas
um homem, provavelmente o dono, postava-se num cantinho atrás de um
balcão de doces que parecia não ser limpo há dias e
cheirava a groselha. Como não tinha chá quente, resolvi pedir uma
batida de coco. Assentei meu traseiro numa banquetinha para saborear a bebida e
pude observar um pequeno animal tentando andar na minha direção.
Era um gato e, parecia não estar normal.
- Coitado, disse o balconista. Este bicho não vai durar muito tempo.
- Ele é seu? Perguntei ao homem
- Não, mas está sempre por aqui bebendo o que lhe dão.
Percebi que o homem e o animal
não eram amigos. Era um gato bonito, mas parecia estar bêbado. Eu
nunca tinha visto um gato bêbado e nem qualquer animal viciado em
álcool. Afastei-me dele, paguei a bebida e saí rumo à
minha casa. Não percebi que o gato havia me seguido e quando cheguei em
minha casa, ele também chegou. Eu já tinha outros animais na
minha casa, mais um não faria diferença. Peguei o bichinho e
senti seu corpo gelado. Chamei-o então Gélinho. Como ele
não reclamou ficou assim batizado.
Gélinho não
brincava, estava sempre irritado e não fazia amigos. Comia pouco, mas
estava sempre querendo beber. Alimentava-o com leite, mas nem sempre ele bebia,
gostava mesmo era de bebida alcoólica. Qualquer copo cheirando a
álcool o atraía. Lambia, lambia e miava como quem diz me
dá mais...
Ficava bravo quando eu afastava os copos dele.
Não dá pra saber como o bichinho vivia antes de nos conhecermos.
Talvez fosse alcólatra de nascença, se é que isso é possivel. Pode ser também desilusão. O fato é que ele queria se matar.
A primeira tentativa de
suicídio do gato observada foi quando ele tentou se afogar numa banheira
velha refugada no fundo do quintal. Aquela banheira nos foi deixada de presente
pelo pessoal da casa ao lado quando da reforma da casa. Não conseguimos
utiliza-la por falta de espaço e também por que falavam que
consumia muita água. Aceitamos o presente porque presente é
presente e não se recusa. A princípio achei que ele tinha
caído na banheira ou que estava tomando banho. Mais tarde percebi,
após ver o gato se atirar do telhado, que ele tentava suicidar-se.
Não havia psicólogo para animais na cidade e o que eu podia fazer
era cuidar dele do meu jeito. Trouxe-lhe uma companhia, uma linda gatinha para
tentar levantar sua auto-estima. Não deu muito certo, pois apenas
brigavam e mais nada. O Gélinho não era sociável nem com
as fêmeas. Será que era gay? Não havia pensado nesta
possibilidade. Talvez fosse. Nunca vou saber, pois o Gélinho está
enterrado no fundo do quintal sob a banheira. Ele conseguiu o que procurava
depois de várias tentativas:
Tomando gasolina ele me deu muito trabalho
e despesa com o veterinário.
Jogando-se na fogueira que fiz para queimar
lenhas e papéis velhos ele ficou todo pelado e gastei muitas pomadas e
remédios para cura-lo.
Pulando do barco em alto mar tive que cair na
água para resgata-lo.
Outras tentativas ele fez e só não
teve sucesso porque eu estava por perto...
Foi quando comemorávamos meu
aniversário num churrasco em casa que finalmente ele conseguiu o que queria.
Estávamos bebendo umas caipirinhas e nos divertindo que me desliguei
totalmente do gato. Ele não saía de perto dos copos. Tentava
beber, mas o pessoal não deixava. Riam do animal e comentavam entre eles
o fato. Como eu já tinha bebido bastante me deitei no sofá da
sala e adormeci. Eu nunca dei bebida para o Gélinho. Sabia que ele
gostava pelas tentativas, apenas isso. Hoje penso que talvez ele precisasse
muito de álcool e que talvez estivesse vivo se eu não tivesse
sido tão radical quanto ao seu vício. Afinal fiz o que achei
certo e não acho certo oferecer bebidas alcoólicas aos animais.
Estava eu sonhando com uma bela
morena de biquíni quando fui acordado com um grito de alguém.
Não sei o que pensei na hora. Levantei e fui ver o que acontecia e me
deparei com o Gélinho enforcado. A cena era triste e feia. No quintal
havia uma pequena horta de tomates e havia também uma parreira de uvas
muito saborosas. Na parreira tinha um cordão de nylon que servia para
segurar o tronco da planta. Foi ali que o Gélinho foi encontrado
enforcado. Não sei como ele conseguiu posto que não havia nenhum
laço preparado, mas ele deu um jeito. Colocou a cabeça entre o
cordão e a madeira e lançou-se no ar. Foi o fim do
Gélinho. Fiquei muito triste por vários dias, mas a vida
continuava na rotina de sempre.
Hoje tenho outros animais, porém nunca
vou esquecer daquele gato. Gélinho, o gato suicida.